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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Meu corpo sente o tempo devorando as horas, engolindo os minutos, dissolvendo cada segundo. Meu corpo abala-se ferozmente por cada dia que se esvai entre as areias do tempo. Até mesmo nisso sou diferente: para os outros de minha "linhagem", o tempo é uma fonte inesgotável de conhecimento, experiência e poder. Para mim, nada mais é do que o ingrato reflexo de minha própria decadência. Ah, a triste e deliciosa ironia da vida. E da morte
Uma parte de benção, duas de maldição. Sim, é verdade que carrego sobre meus ombros uma dádiva, o santo peso da missão de purgar todo o mal. Nada poderia alegrar mais esse humilde cruzado do que ser tocado por Ele. Posso ouvir as trombetas tocarem por mim, posso ouvir os brados arrependidos dos cruéis, depravados e pecadores às portas do Inferno. Eu ouço o Chamado cada vez que um corpo tomba, cada vez que sangue inocente pinta cruelmente o solo, cada vez que um irmão ou irmã cai em agonia. E é o Chamado que mantem trilhando fielmente o caminho.
Entretanto, existe o inconveniente preço a se pagar pelo sacro poder: nada mais é como na época em que eu era um mero Impuro. Os sabores, as sensações, os sentimentos, tudo diferente. Não posso mais sentir meu coração bater freneticamente durante cada combate contra um inimigo, como na época na qual eu ainda vivenciava minha frívola humanidade. Agora, ele se comporta mais como uma massa esponjosa e pútrida, retorcida e virulenta, pulsando languidamente e debatendo-se em agonia. Já não experimento mais as coisas como um Impuro. O meu corpo sente apenas o frio, mortal e penetrante. Meus olhos vêem apenas morte e decadência amplificadas voluptuosamente. Meus ouvidos são apurados, dotados de capacidade quase animalesca, como os de uma fera mortalmente selvagem e incontrolável. Meu faro é preciso, localiza o meu inimigo com muito mais facilidade. São dons preciosos, concedidos gentilmente por Ele para a realização de minha santa missão. Mas não posso "ligá-los" e "desligá-los", como um interruptor, ou "apagá-los", como a chama de uma vela. Não há mais sono para mim, apenas o breve e frugaz repouso entre uma e outra batalha.
E minha sina não termina aí. Ah, a cruel ironia divina. Para Ele, não basta que eu termine minha missão, mas que a termine rapidamente, o mais rapidamente possível. Ele tem pressa, seus planos misteriosos têm carater emergencial, então ele me "imbuiu" de uma segunda parte de maldição: ao contrário dos outros, que são alheios à passagem do tempo e à decadência imposta por ele, eu estou morrendo. Teoricamente, morrendo de novo, segundo o que ouço dizerem por aí. Morrendo de verdade, perecendo, sofrendo o desgaste provocado pelo passar do tempo. Eu não tenho muito tempo, e tenho tanto a fazer... Eu sou um servo fiel D'ele, sigo ferrenhamente seus desígnios, com honra, devoção e batizado pelo sangue e pelas lágrimas da batalha.


E ele parece rir de mim.






Extraido de "Mortuarium", diario de Maximilian Arador, o caçador

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